4.7.06

A CLARIFICAÇÃO QUE SE IMPUNHA

«Nunca gostei de Scolari como seleccionador nacional - é um facto inegável. O homem é insuportavelmente enfatuado, acha-se inatingível nas suas opções e crê-se acima de todas as críticas»

«
costumo fazer um paralelo com José Saramago: bom escritor, alcançou os níveis mais elevados na sua "carreira"; mas não gosto dos seus livros e considero-o uma figura pessoal execrável»

«
Assim, cinicamente, Scolari reinventou-se como um símbolo de todos os adeptos das mais inenarráveis teorias da conspiração que julgam, para além de qualquer sombra de razoabilidade, que há poderes ocultos no futebol português, tenebrosos e sinistros, que mistificam a verdade desportiva 24 horas em cada um dos 365 dias do ano» ###

Nunca gostei de Scolari como seleccionador nacional - é um facto inegável. O homem é insuportavelmente enfatuado, acha-se inatingível nas suas opções e crê-se acima de todas as críticas. Pertenço àqueles que estão convictos que as duas derrotas de Portugal com a Grécia, no Euro 2004, se deveram à sua táctica incipiente, previsível e pouco maleável a quaisquer adaptações por mais que a realidade as invoque.
No entanto, julgo-o um político nato. Instintivo. Mal chegado a Portugal logo percebeu que para arrastar atrás de si a imensa mole dos crédulos nas lendas informes do futebol luso (sobretudo, desde que os clubes lisboetas perderam o habitual domínio administrativo do facto), bastava escolher um inimigo contra quem arremeter desvairadamente: o F. C. do Porto. Toda a estratégia pessoal de Scolari em Portugal assenta neste pressuposto simples:
- declarar-se um paladino da santa demanda contra o clube que, embora minoritário no número de simpatizantes, praticamente desde o momento em que existe Democracia consegue vencer tudo o que há para ganhar no futebol nacional e internacional.
Assim, cinicamente, Scolari reinventou-se como um símbolo de todos os adeptos das mais inenarráveis teorias da conspiração que julgam, para além de qualquer sombra de razoabilidade, que há poderes ocultos no futebol português, tenebrosos e sinistros, que mistificam a verdade desportiva 24 horas em cada um dos 365 dias do ano. Esta, supostamente, basear-se-ia no sebástico regresso ao passado dos 50's e 60's, quando os clubes da capital dividiam entre si o espólio das vitórias que, também entre si, calabotianamente engendravam.
Assim, mais do que um treinador, Scolari tornou-se num excelente "Chefe de Claque", o líder espiritual de uma massa informe de gente saudosista, uma nova União Nacional, totalizante, insindicável e intolerante face a qualquer análise menos aduladora e que prescindiu da tarefa de pensar naquilo que verdadeiramente estava em questão (uns por natureza, muitos por vontade) em prol de uma causa a que chamaram, hiperbolicamente, o "clube Portugal".
O enorme apoio popular e o da esmagadora maioria da imprensa desportiva estavam garantidos com a erecção desses mitos anti-F.C. do Porto e a figura do seu presidente, repristinados na amálgama dos sentimentos mais mesquinhos e obscuros de que a mitomania do futebol nacional é farta.
Foi apenas por isso que Scolari não convocou Vítor Baía há 2 anos - hoje essa convocação não se coloca, já que Baía passou a ser suplente no seu clube (embora Quim também o seja no Benfica, mas isso, claro, já não importa nada à costumeira coerência dos apoiantes de Scolari) - apenas como uma exibição das suas intenções sanguinolentas para gáudio da multidão esfaimada e, nesse ano, especialmente humilhada pela inigualável campanha do Porto de Mourinho.
Foi por isso, também, que Scolari nunca perdeu uma oportunidade para desdenhar publicamente o F. C. do Porto quer por palavras quer por acções. Deve ser caso inédito no futebol de qualquer parte do mundo que um seleccionador esteja a trabalhar 3 anos e meio num país e nunca tenha falado com um dos vários treinadores do seu principal clube. Que nunca se tenha deslocado ao seu estádio, às suas instalações desportivas, nem sequer para ver um jogo...
Decidido o inimigo a abater, a estratégia e o marketing de Scolari tinham aliados poderosos capazes de o catapultar nos bons momentos e de lhe amortecerem os dissabores nos maus. Depois de um Euro 2004 realizado em casa e em condições excepcionalmente favoráveis, Portugal chegou à final com a Grécia e perdeu essa oportunidade. Mas o apoio mediático que tinha arranjado, a coreografia das bandeiras à janela e o unanimismo que essas ocasiões visceralmente acéfalas comportam, fizeram com que a sua posição tivesse atingido a intangibilidade.
Poder-se-ia pensar que Scolari, angariado o apoio inicial, iria partir para a campanha do Mundial livre dos seus preconceitos arrivistas da chegada - mas não, insistiu no mesmo, ainda mais destemperadamente, inundando de arrogância tudo o que fazia.
Qualquer crítica era vista como uma agressão inapelavelmente deduzida por ignorantes que não faziam qualquer ideia do que estavam a falar. Nem que aqueles que lhe fizessem reparos fossem comentadores reputadíssimos, como Luís Freitas Lobo, ou, "apenas", o melhor técnico de futebol do mundo, José Mourinho.
A campanha do Mundial foi preparada ao seu estilo e, aí, Scolari demonstrou as suas piores e melhores facetas: convocou um grupo de fiéis, jogadores de lealdade incondicional, independentemente do seu estado de forma ou de estarem ou não a jogar nos seus clubes. E sempre, sempre, a impúdica compulsão em afrontar o F. C. do Porto. A não convocação do melhor jogador português a jogar no nosso campeonato, Quaresma (aparentemente preterido por um trágico-cómico Boa-Morte) só é igualada pela hipócrita chamada de um jogador suplente do F. C. do Porto, Ricardo Costa, a quarta ou quinta escolha da sua defesa...
Mas Scolari é imbatível noutros campos - o que lhe falta em estratégia futebolística e em rectidão de procedimentos, sobra-lhe em capacidade de liderança, de disciplina, de aptidão em forjar um espírito de grupo e de lhes extrair o melhor do seu empenho durante os jogos.
E depois vem a sorte. Uma sorte imensa, irreal, raras vezes vista no futebol precipitada numa só equipa. Pretexto maior para a nuvem de superstição barata que, uma vez mais, tristemente, acompanha as nossas selecções - depois dos "alhos-contra-o-mau-olhado" de Oliveira são as várias "virgens" de Scolari e outras "macumbas" que não se escrevem mas muitos sussurram.

Há mais de 20 anos que tento não perder ao vivo um jogo da selecção nacional. Ainda rapazote, com um grupo muito animado de amigos, ia para Lisboa nas velhas camionetas "piratas" ver Portugal ganhar à Escócia, perder com a Suécia (1-3) e com a Bélgica (Silvino), empatar com a Alemanha, vencer a URSS com aquele penalty arrancado por Chalana que se atirou para dentro da área a cerca de 1 metro desta. Vi jogar Portugal no Porto, em Coimbra, em todo o mundo, fui a Inglaterra ao Euro 96 e à Holanda no Euro 2000. Vibrei e chorei com a selecção em todo o lado e não aceito lições de figurado patriotismo de ninguém, dentro ou fora do futebol.
Por isso, apenas que me conhecem há muito tempo poderão estimar a dor que sinto com esta figura detestável de seleccionador que temos (costumo fazer um paralelo com José Saramago: bom escritor, alcançou os níveis mais elevados na sua "carreira"; mas não gosto dos seus livros e considero-o uma figura pessoal execrável).
Quando ele confirmou as escolhas dos seus amigos, vulgarmente conhecida por convocação, escrevi aqui que não conseguiria apoiar aquela equipa.
Mas o que não consegui foi cumprir essa promessa. Já o intuía, claro. Mal tocou o hino e vi a cor dos equipamentos senti-me outra vez aquele menino que saía de casa de madrugada para poder ver a selecção à noite, sair do Estádio suado, rouco e extenuado e tantas vezes ensopado, como se eu próprio tivesse estado todo o tempo a correr atrás da bola.
Mas toda a inevitável e indisfarçável emoção incrementada pelos resultados positivos não nos podem fazer renunciar à capacidade de pensar, observar e criticar.

Ser patriota não é aceitar bovinamente todos os desmandos que nos atiram à cara.
Ser patriota não é esquecer as ofensas de quem aproveita o cargo para extrair o pior que existe no colectivo para proveito próprio.
Ser patriota não é ignorar os erros tácticos e as substituições injustificáveis.
Ser patriota não é admitir que o Vítor Baía não deveria ter sido convocado há 2 anos porque hoje, e não então, o Ricardo está em melhor forma.
Ser patriota não é defender, cegamente, que o Boa-Morte faz bem o lugar de Quaresma.
Ser patriota não é dizer que o Moutinho não faz falta.
Ser patriota não é fingir desconhecer que o João Tomás está em muito melhor forma do que os 3 pontas-de-lança que Scolari escolheu.
Ser patriota não é colocar uma bandeira na janela a pedido.
Ser patriota não é dizer que aquela inacreditável musiqueta do "nhá, nhá, nhá, nhá, nhá", com que a SIC nos atordoa incessantemente, é minimamente audível.
Ser patriota não é manter o canal impavidamente sintonizado quando o Nuno Luz exprime a sua visão das coisas.
Ser patriota não é ouvir o Prof. Marcelo a estabelecer novos parâmetros do "politicamente correcto" no mundo do futebol.
Ser patriota não é garantir que a vitória de uns portugueses é a derrota de outros.
Ser patriota não é assegurar que Vítor Baía e Pinto da Costa «foram derrotados» quando a selecção vence a Holanda ou a Inglaterra.
Ser patriota não é asseverar que os desacertos não existem porque os resultados são positivos.
Ser patriota não é estar constantemente, compulsivamente, a falar do Eusébio, dos Magriços e das suas eventuais reencarnações.
Ser patriota não tem de designar um estado de parolismo absoluto, de aceitação acéfala de tudo aquilo que o seleccionador (seja ele quem for) se lembrar.
Ser patriota não é berrar, de modo reles, que a vitória de Portugal significa «engolir sapos» para alguns portugueses.
Ser patriota não é sinónimo de se ser anti-portista.
Nem sequer - last but not the least - admitir que o cabelo recém-aloirado do sr. Madaíl lhe fica muitíssimo bem...

Claro que apoiei a selecção em todos os jogos - porque não sei ser de outra maneira. Claro que desejo intensamente que Portugal supere a França e vença a final de Domingo.
Mas nada disso traduz uma anuência em relação ao estilo e forma de estar de Scolari. E muito menos, uma conciliação com os roncos exuberantes dos seus apoiantes irrestritos.
Os resultados que Scolari adquiriu põem a sua continuação no cargo inteiramente à sua disposição. Entretanto, o já-quase-capilarmente-nórdico, sr. Madaíl, surge a avisar os portugueses que o seu próprio lugar de presidente da Federação ainda não está assegurado.
Proponho o seguinte: para atalhar caminhos e razões, não seria melhor alcandorar Scolari directamente ao cargo de presidente da FPF, que materialmente já é indisputadamente seu, e aproveitarmos o ensejo para nos livramos da figurinha lamentável que já lá está há uma década?