Nos últimos dias, algo camuflado pelo folclore da bola, assistiu-se a um enorme coro de indignações pelo novo protocolo que a Câmara Municipal do Porto exige seja assinado pelas instituições a quem concede subsídios, proliferando já por aí algumas Cassandras que garantem estar em perigo a liberdade de expressão. Nesse protocolo, constará uma cláusula em que a entidade beneficiária do subsídio se compromete a não criticar publicamente a política da CMP relativamente à área ou sector - cultural, recreativo, social - objecto do apoio camarário.###
Devo dizer que não percebo as razões de tanta indignação. Qualquer pessoa de bom senso se abstém de criticar em público o patrão que lhe paga o salário por muito que dele discorde. Tem sempre a possibilidade de "votar com os pés" e procurar novo emprego, a forma mais eficaz de o assalariado prejudicar o patrão, admitindo que a sua competência é vital ao funcionamento da empresa. De igual forma, as entidades candidatas a um subsídio da CMP e a quem repugne a famigerada cláusula, têm sempre a faculdade de recusar subscrevê-la, abdicando em simultâneo do subsídio. Até à data, não tenho porém conhecimento de que alguma o tivesse feito, o que só pode indiciar estarem dispostas a vender a sua liberdade a troco de um subsídio.
Nada disto é novo. Desde há muito que as políticas estatistas abdicaram da anacrónica "colectivização dos meios de produção" e optaram pela sofisticada técnica dita de "redistribuição" socialista de tirar a todos para dar a alguns. Estes "alguns" pertencem quase sempre às elites intelectuais ou económicas, com fácil acesso ou influência nos media, o que lhes confere alguma capacidade de fazerem opinião. Por outro lado, o serem beneficiários das contribuições de todos, cujas "migalhas" agregadas formam um "bolo" assaz apetitoso, representa para eles um incentivo a que se organizem em moldes profissionais com vista à maximização e perenização do dito "bolo". Por sua vez, quem para este contribui a nível individual, sabe ou sente que lhe ficaria mais caro lutar pela preservação das suas "migalhas" do que, pura e simplesmente, abdicar delas. Este mecanismo de "redistribuição" tem-se revelado bastante eficaz, até pela aceitação social do mesmo que os principais beneficiários conseguiram fazer vingar, seja pela sua capacidade de influência, seja pela força de algumas convenções que se foram consolidando ao longo do tempo e hoje encaradas como indiscutíveis. É crime de lesa cidadania pôr em causa apoios públicos a algo considerado imprescindível e indiscutível como a cultura, o desporto ou actividades de cariz social.
Todo este "caldo de cultura" tem permitido conjugar na perfeição os interesses super materialistas das corporações beneficiárias e eleitoralistas da classe política, que assim compra influência de supostos líderes de opinião. Fernando Gomes foi hábil e diplomata a gerir estes acordos estabelecidos bilateralmente no recato dos gabinetes e "comprou" múltiplos e sofisticados apoios; Rui Rio, ao pretender a plena contratualização, comprará quando muito silêncios públicos e muitos "rosnares" privados.
Este não é, porém, o principal erro de Rui Rio, que mostra no fundo aceitar os vícios e distorsões do sistema. Esperar-se-ia dele uma mudança radical de paradigma que o pusesse em causa e fizesse jus a uma verdadeira política de ruptura, tão propagandeada quando conquistou a Câmara. Substantivamente, tal consistiria apenas e tão só em acabar com todos os subsídios. Os ódios das corporações persistiriam ad eternum, mas a sua respeitabilidade junto dos contribuintes subiria em flecha.