Você está enganado em vários aspectos. Quer quanto à natureza da União Europeia e dos procedimentos comunitários vigentes, quer quanto às minha (nebulosas e sebastianicas) intenções. Vejamos primeiro os primeiros, para depois ponderarmos nos segundos.
1. Você afirma que «No caso Europeu, o actual ?status quo? tem pelo menos a presunção de que o funcionamento das instituições e tratados estão sujeitos a supervisão de cada Estado e geridos de forma inter-governamental».
Está enganado.
Só o Conselho Europeu obedece a uma lógica puramente intergovernamental. Infelizmente, como certamente saberá, ele não pode ser considerado uma instituição da União Europeia. A Constituição iria consagrá-lo como tal, mas, como bem sabe, ela não está em vigor e dificilmente virá a estar. Seguindo a sua linha de raciocínio, é pena, portanto.
Mas, ao contrário do que poderá supor, a Comissão, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça são instituições absolutamente supranacionais e, essas sim, pertencem à União. Quer isto dizer que obedecem a uma lógica própria que não responde perante os Estados.
Ora, como sabe, o processo de decisão comunitário mais vulgar no âmbito do seu Iº pilar (a Comunidade Europeia) é o processo de co-decisão: iniciativa legislativa da Comissão, decisão do Conselho e do Parlamento. Pouco ou nada intergovernamental, portanto.
O próprio Conselho (de Ministros, note-se) decide sobre legislação proveniente da Comissão e «filtrada» pelos COREPER. Ou seja, decide sobre «trabalho já feito» e feito, uma vez mais, em regime muito pouco intergovernamental.
2. Não se deve, por outro lado, confundir uma Constituição histórica, ou uma «unwritten Constituion» com uma constituição apenas fundada no costume e na qual não existam leis escritas. A constituição inglesa, paradigma recorrente nesta matéria, fundamenta-se em inúmeros documentos escritos. Muitos deles resultantes de declarações de assembleias representativas que fizeram autênticas rupturas na ordem constitucional então vigente. Remeto-o, para melhor esclarecimento, para as «Statute law» e para os «Parliamentary Acts» referidos no meu «post» «A vitória do sr. Fabius», embora esteja certo que os não ignorará, muito menos os contextos históricos que lhes deram origem.
3. Quanto ao ponto que defendo, ao célebre «nevoeiro na Auto-Estrada» que lancei, deixe-me esclarecê-lo do seguinte: do ponto de vista material EXISTE E ESTÁ EM VIGOR UMA CONSTITUIÇÃO DA E NA UNIÃO EUROPEIA! O texto do famigerado Tratado que foi vetado em França pouco mais faz do que reproduzi-la e ordená-la. Quanto às regras do funcionamento das instituições, aos seus poderes e competências, já existe tudo e pratica-se todos os dias.
4. O problema está em saber determinar com alguma precisão e rigor essas regras, mesmo até encontrá-las nos inúmeros tratados instituidores e de revisão, acórdãos jurisprudenciais e costumes institucionais. Quer mais exemplos? Ora diga-me lá onde encontra as regras das deliberações do Conselho? Serão as do TCE (Tratado da Comunidade Europeia) alteradas em Amesterdão, ou em Nice? Neste último caso, será que conhece os Protocolos adicionais que se lhes referem? E a reparticipação de competências entre a União e os Estados-Membros, fonte eterna de confusões e abusos por parte das instituições comunitárias, que se aproveitam da sua vacuidade para, em nome da velha doutrina funcionalista do «spill-over» invadirem domínios da soberania dos Estados que não lhes pertencem? Como evitar que isso suceda e delimitar esses estragos, sem fazer fé, como você diz e bem, que essas cautelas partam do próprio poder político comunitário, solução que me parece ser a que manifestamente você prefere?
5. Foi precisamente por motivos parecidos com estes que, nos séculos XVIII e XIX, os liberais se bateram pela existência de Constituições escritas nas quais figurassem, de forma clara e inequívoca, as regras de organização do poder político, e o limite das suas atribuições e competências. Infelizmente, nem todos os países tiveram o privilégio na sua História de poderem evoluir constitucionalmente de forma civilizada, lenta e progressiva, como sucedeu em Inglaterra. Assim, para impor limites ao apetite dos soberanos («lato sensu») foi necessário fazer Constituições escritas, onde figuravam regras gerais e abstractas (um valor caro ao liberalismo, há-de convir) sobre o poder e a sua administração.
6. Com o famigerado Tratado Constitucional passa-se coisa muito parecida. É que, conforme concordará, entre manter a situação vigente, com normas de distribuição de poderes e de competências confusas e dispersas, e torná-las clarinhas e de fácil compreensão, não hesito em preferir a segunda possibilidade. Foi essa hipótese que, bem ou mal, os franceses por ora invalidaram.
7. Por último, permita-me somente duas notas finais.
A primeira, para constatar esta estranha aliança entre «liberais clássicos» e franceses. Não é habitual assistir-se a semelhante sintonia que faria Burke revolver-se na tumba. Mas, enfim, admito que, desta vez, ao invés de 1789, os homens possam até ter alguma razão.
A segunda, para lhe lembrar que o problema da genealogia do conceito europeu continental de «lei», fundada no direito romano justinianeu do Baixo Império, autêntica expressão da vontade soberana do príncipe («lato sensu»), da sua contraposição à ideia ordinalista da «common law», há muito me preocupa. Tenho, aliás, lançado alguma «nebelina» por aqui e por outros lados sobre o assunto, como fará o favor de reconhecer.