30.5.05

O direito a ser

A Amnistia Internacional classificou o que se passa actualmente na Base Militar norte-americana de Guantanamo (em Cuba), como «o Gulag dos tempos modernos». Tal motivou uns comentários do Luciano Amaral e uma viva discussão no Mar Salgado.
A frase é infeliz, imprecisa e abusiva. Como os referidos autores melhor explicaram, o Gulag foi um sistema de repressão que visava punir, destruir e matar todos quantos pudessem constituir uma ameaça (real ou imaginária), ao poder totalitário comunista, para além de factores totalmente arbitrários e discricionários, como fosse a necessidade de mão de obra para grandes empreitadas. Assim, e perante o que se passa em Guantanamo, tal comparação, é totalmente descabida.

Tal não retira que a forma como o governo dos Estados Unidos tem lidado com os presos em Guantanamo não seja censurável. É e muito.
Como bem sabe quem é adepto das democracias liberais de sentido clássico, não é aceitável que um poder (neste caso, o executivo, pela mão do respectivo presidente) concentre e exerça o poder discricionário de deter, acusar, fixar as condições de detenção, a definição da tipologia de crime que eventualmente serão acusados e as condições em que a defesa poderá actuar. Tudo isso é contrário ao sentido e fundamentos da justiça, aos princípios de legalidade, ás garantias dadas pela separação de poderes e ao bom senso.
Os detidos em Guantanamo ou cometeram crimes civis (nomeadamente terrorismo), e como tal podem e devem ser acusados pelas leis e procedimentos existentes em qualquer país civilizado, ou são prisioneiros de guerra e então poderão eventualmente ser acusados de crimes de guerra, nomeadamente contra populações civis. É verdade que os Eua estão formalmente em guerra contra o terrorismo. Tal poder executivo, atribuído excepcionalmente ao chefe do executivo, nunca pode invalidar as suas próprias leis, referentes a crimes civis ou as convenções internacionais relativas a prisioneiros de guerra. O que é totalmente inaceitável é a criação de um regime de não-direito em que se encontram aquelas pessoas.

Creio que o sistema judicial e legal dos Eua, mais tarde ou mais cedo, vai reconhecer que a situação daqueles prisioneiros, impedidos de serem regidos de acordo com algum tipo de legalidade, viola os princípios constitucionais. E haverá as consequentes medidas reparadoras e sancionadoras. A eventual prática de tortura ou a entrega daqueles prisioneiros a países adeptos e praticantes de tortura, numa sociedade livre e democrática deve ser imediatamente investigado, se as acusações tiverem algum base de apoio. Numa sociedade aberta, esta não receia nenhuma investigação: se se provar as ilegalidades e abusos, alguém há-de ser punido. Se se provar a falsidade das acusações, alguém poderá ser processado por difamação. É assim que as coisas se devem passar. Sempre, não importa quem sejam as potenciais vítimas ou os potenciais abusadores.
O que se passa em Guantanamo não é o Gulag. Mas julgo que é demasiado arbitrário, escandaloso, repugnante e inaceitável para quem defenda que todas pessoas tem direito a viver em sociedades livres, democráticas e baseadas no primado e respeito da lei, nas quais, qualquer pessoa, não importa quem, nem o que lhe seja imputado, tem os direitos básicos de defesa e de dignidade.