29.5.05

PARADOXOS: a expressão de um país doente.

Em França tudo aponta para que o «não» seja vitorioso. Há que reconhecer que é um paradoxo: o Tratado Constitucional Europeu redesenhou os mecanismos previstos no Tratado de Nice por forma a favorecer os interesses especiais da França, nomeadamente na questão dos votos ponderados, na defesa de um esotérico e falido «modelo social», na «excepção cultural», na defesa intransigente da continuação de uma escandalosa e ruinosa PAC - Política Agrícola Comum, entre outras questões. Nesse aspecto, os defensores do «sim», especialmente as forças do centro-direita como a UDF, Chirac e Gircard tem razão: o TCE favorece a França. O que não quer naturalmente dizer que seja bom para a Europa ou para os outros Estados. Pelo contrário.
Nesse sentido tem razão Eduardo Lourenço ao defender hoje no «Público» que «A França que certamente votará "não" na noite de 29 de Maio, não vota nada contra a Europa, mas contra si mesma, num "remake" suicidário que só tem paralelo simbólico na "débacle" de 1940.».

E porque é que isso acontece?
A extrema- esquerda, a extrema-direita, e uma grande franja do centro-esquerda uniu-se na defesa do «não». As razões são as piores possíveis, mas muito sintomáticas das diferentes «doenças« que aquela sociedade atravessa: conservadorismo e nacionalismo exacerbado, ressentimento contra o resto do mundo que não compreende os desígnios e «grandeur» da França, o redespertar dos seu tradicional e bem enraízado xenofobismo e racismo (como se viu nesta campanha, apontando a dedo aos operários polacos ou portugueses como «inimigos»).o medo do futuro. E o profundo desejo de tudo continuar na mesma, como até aqui, num mundo que se transforma e modifica todo os dias.

É paradoxal que toda a argumentação do «não» e do «sim» se unam numa ideia envelhecida e fora da realidade, na qual cada campo tenta vender a ideia de que é o campeão na defesa do proteccionismo, dos interesses «nacionais», do «modelo social», da PAC, contra o «liberalismo», a concorrência, a liberdade de comércio, da iniciativa privada, em defesa dos serviços públicos, etc.

É uma sociedade profundamente em crise a de hoje, 29 de Maio. E amanhã começa a ressaca. Porque irão descobrir que o mundo e sobretudo a restante Europa nem sequer ligarão para as suas motivações do seu «não». De ridículas e mesquinhas que são. O mundo caminha, felizmente, no sentido contrário. E será a realidade a impor-se. A França será em breve obrigada a rever toda a sua forma de olhar para si mesma. E ou se abre novamente ao mundo, aos ventos da liberdade (de comércio, á livre circulação, à iniciativa, á concorrência, ao diferente, ao multicultarismo), ou se fechará sobre si, numa espiral, essa sim, semelhante ao que se passou no anos 40 do século passado, dando ainda maior espaço para as diferentes utopias totalitárias.
Nesse aspecto as razões do «sim» e do não» francês são todas potencialmente perigosas.

O interessante neste «não» é que ainda que o mesmo vença na base numa argumentação totalmente errada e viciada, (e porque em democracia todos os votos são iguais, importando apenas o resultando, sendo indiferente as diferentes motivações), esse resultado (o do chumbo do TCE), é extremamente positivo para toda a Europa.
Porque impede a consagração de uma arquitectura de poder interno na União lesiva dos interesses de muitos outros Estados, porque impede a consagração das tais «excepções» francesas acima apontadas, porque travará este ímpeto de «em frente a todo o vapor», esquecendo-se que os pequenos passos são mais realistas, porque inevitavelmente, numa futura e provável negociação para um novo Tratado, esse sim, será simplificador, unificador, tal como originalmente se pretendia. Porque a noção de «constituição» será impossível tão cedo de se repetir. Aliás, essas motivações estão muito na base da rejeição que se adivinha também na Holanda, que pretende uma Europa integrada, mas mais devagar, passo a paso. E não estes passos de gigante, marcadamente imperialistas.

Por tudo isso, e apesar da má origem dos argumentos do «não francês, a sua vitória merecerá uma saborosa comemoração.