29.5.05
A VITÓRIA DO SENHOR FABIUS
A mais do que provável vitória do «não» no referendo francês à Constituição Europeia, coloca duas questões imediatas: em situação fica a União Europeia, no que diz respeito às normas jurídicas que a Constituição iria substituir; e o que está verdadeiramente em causa nesta polémica?
1. O Que Fica.
Ao contrário do que a esmagadora maioria dos partidários do «não» (e, provavelmente, a maior parte dos defensores do «sim») imagina, a resposta poderá ser surpreendente: mantém-se a Constituição comunitária em vigor!
Isto quer dizer que o facto do tratado que hoje se referenda ser o primeiro a assumir-se como uma «Constituição instrumental» da União, isso não significa que ela não disponha já de uma verdadeira Constituição, embora se possa classificá-la como «Constituição material». Ninguém ignora certamente que a União é uma entidade política com poderes próprios que excluem os Estados no seu exercício, outros que exerce em concurso com aqueles, e alguns outros em relação aos quais ninguém sabe com precisão que autoridade prevalece. Por outro lado, a União Europeia dispõe de uma estrutura institucional própria, com natureza supranacional (embora alguns desses órgãos obedeçam a uma composição intergovernamental), que obedece a regras jurídicas instrumentais e substantivas sobre a sua organização, composição, competências e o exercício das mesmas. Este direito que define esse conjunto de prerrogativas, de poderes verdadeiramente soberanos, e as relações entre a União e os Estados-membros e os seus cidadãos, não pode deixar de considerar-se verdadeiro «direito constitucional comunitário».
É que, ao contrário do que afirmam os constitucionalistas de inspiração francófona, como o Professor Jorge Miranda, apesar da Constituição instrumental (isto é, aquela que se encontra codificada num só texto, elaborado através da expressão voluntarista de uma assembleia constituinte) ser, de facto, o paradigma do constitucionalismo contemporâneo, ele não esgota a tipologia das constituições do Estado de direito. A primeira que se configura de imediato neste último número é, sem dúvida, a Constituição britânica (embora se possam acrescentar as do Estado de Israel e da Nova Zelândia), que é não apenas uma «unwritten Constitution», como é, também, uma Constituição histórica. Ou seja, não se encontra codificada, e o seu conteúdo tem sido determinado ao longo da história política da comunidade a que se aplica, por via de fontes tão díspares quanto a Magna Carta, de 1215, a Petition of Rights, de 1628, o Bill of Rights, de 1689, ou os Parliementary Acts, sobretudo os do século passado, e por usos, costumes e praxes constitucionais de origem dificilmente determinável.
Com a Constituição comunitária em vigor passa-se o mesmo. Ela resulta de um conjunto de actos com natureza contratual estabelecidos entre os Estados-membros (os tratados instituidores e de revisão), pela jurisprudência do Tribunal de Justiça comunitário, por usos e costumes institucionais.
E é precisamente aqui que reside a primeira necessidade de uma Constituição comunitária instrumental: o excesso e a dispersão de fontes, a dificuldade, até mesmo para os especialistas, em conhecê-la e manejá-la, e a possibilidade, muitas vezes concretizada, dos grandes Estados se aproveitarem desta situação para tirarem vantagem. Querem um exemplo concreto desta última hipótese? Têm-no na composição da Comissão, a instituição comunitária mais importante, que, até ao Tratado de Nice (2001) era composta por dois membros indicados por cada um dos cinco grandes Estados (Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha) e um por cada um dos restantes. Em que disposição normativa se encontrava esta regra importantíssima? Em lado nenhum! O que dizia o TCE (Tratado da Comunidade Europeia) era o seguinte: «A Comissão deve ter, pelo menos, um nacional de cada Estado-Membro, mas o número de membros com a nacionalidade do mesmo Estado não pode ser superior a dois» (artigo 213º, nº 1, § 4º). Em lado algum se afirmava o que de há muito vigorava: a descriminação dos Estados menores em favor dos cinco grandes, na sua participação quantitativa no executivo comunitário.
Em síntese, muito sumariamente, diga-se que as regras constitucionais em vigor, que se manterão não sendo ratificado o Tratado Constitucional, são as seguintes:
- Tratado da União Europeia, aprovado em Maastricht (1992), revisto pelos Tratados de Amesterdão (1997) e de Nice (2001);
- Tratado da Comunidade Europeia, aprovado em Roma (1957), revisto pelo Acto Único Europeu (1986), pelo Tratado de Maastricht, pelo Tratado de Amesterdão e pelo Tratado de Nice;
- Tratado da Comunidade Europeia de Energia Atómica, aprovado em Roma (1957), revisto pelo AUE, e pelos Tratados de Maastricht, Amesterdão e Nice.
- Jurisprudência do Tribunal de Justiça comunitária, nomeadamente, os acórdãos:
- «Costa/ENEL», de 15 de Julho de 1964, e «Simmenthal», de 9 de Março de 1978, onde se consagra o princípio do primado do direito comunitário sobre os direitos nacionais;
- «Van Gend en Loos», de 5 de Fevereiro de 1963, onde se proclama o princípio do efeito directo do direito comunitário nas ordens jurídicas nacionais;
- «Os Verdes vs. Parlamento», onde se afirma o princípio da comunidade constitucional de direito;
- Costumes e praxes constitucionais;
- Actos institucionais atípicos, como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada a 7 de Dezembro de 2000.
Pergunta-se: será esta dispersão de normas constitucionais, muitas delas fixadas pela conveniência dos grandes Estados, aproveitando a fragilidade dos demais, conveniente para a transparência, a democracia e a liberdade comunitária e dos cidadãos que integram a União. Claramente, não. Razão pela qual se torna urgente promulgar um texto uniforme, claro, compreensível, e de fácil acesso aos cidadãos.
2. O Que Mudaria com o Tratado Constitucional?
Parece ter sido aqui que se levantaram os principais fantasmas em relação ao texto do Tratado Constitucional e ao método da Convenção que o preparou.
O que pairou na opinião pública foi que o Sr. Giscard d'Estaing, mais uma dúzia de amigalhaços teria elaborado um texto novo, onde se encontrariam regras constitucionais sem precedentes na vida da União. Trata-se, obviamente, de uma falácia produzida ou pela ignorância de quem discorre sobre estes assuntos, ou por razões de pura propaganda política.
Vejamos: A Parte I do Tratado Constitucional é uma actualização do Tratado da União Europeia de Maastricht; a Parte II («Carta dos Direitos Fundamentais da União») é a reprodução da já referida proclamação com o mesmo nome; a Parte III («Políticas e Funcionamento da União» é a transcrição quase integral do Tratado da Comunidade Europeia (a versão provisória indicava inclusivamente, à frente do número de cada artigo, o número do artigo do anterior Tratado).
Onde estão, então, as grandes novidades? No conteúdo do articulado? Vejamos, mais uma vez.
No que se refere às votações no âmbito do Conselho sobre as matérias comunitarizadas (isto é, as que compõem a Parte III da Constituição), elas obedecem primordialmente à regra da maioria qualificada e já não à da unanimidade, embora esta última permaneça em muitas matérias, conforme resulta do articulado da Parte III. Mas essa tem sido, nos últimos vinte anos, uma tendência da evolução das Comunidades e da União, sendo certo que, pelo menos desde Maastricht, isso se tornou muito claro. Actualmente, já acontece que a maioria qualificada se impõem em muitas mais matérias do que a unanimidade. A amplificação dessa regra tem sido feita em cada revisão dos tratados, e é uma intenção assumida pelo Conselho Europeu, isto é, pela instituição que representa os Chefes de Estado e dos Governos dos Estados-membros. Por outro lado, justifica-se a sua necessidade pela razão evidente da flexibilidade dos procedimentos de decisão actualmente a vinte e cinco, a vinte e sete, muito brevemente, e por aí em diante. Como é evidente, só por brincadeira se poderia afirmar que uma União onde prevalecesse a regra da unanimidade na maior parte das matérias, a vinte e cinco Estados, poderia funcionar e decidir.
Também as minorias de bloqueio, onde se decide por maioria qualificada, continuam a vigorar: segundo o artigo I-25º, 55% dos membros do Conselho, num mínimo de quinze, representando estes, pelo menos 65% da população da União, nos projectos-lei propostos pela Comissão; e 72% dos seus membros, representando, pelo menos, 65% da população, quando o Conselho delibere sem proposta da Comissão. Este aspecto é muito importante: os 55% de votos são exigidos quando há proposta da Comissão, isto é, nos casos em que o Conselho não decide sozinho. Nesta última hipótese, a exigência é muito maior. Acrescente-se que a maioria qualificada e as minorias de bloqueio existem desde há muito na vida da União.
Como igualmente não colhem os receios provenientes da criação do Ministro dos Negócios Estrangeiros, responsável pela PESC (artigo I-28º). A opinião pública assustou-se, convencida que, finalmente, vinha aí um órgão comunitário para conduzir a política dos Estados na comunidade internacional. Mas, nem esta última asserção é verdadeira, porquanto ele tentará estabelecer uma coordenação nessas políticas no âmbito da Cooperação estabelecida na PESC, como, ainda por cima, a figura se limitaria a substituir o já existente, desde o Tratado de Amesterdão, «Alto-Representante do Conselho para a PESC», cujas funções eram rigorosamente as mesmas, embora no Tratado Constitucional ele deixasse de ser membro do Conselho, para passar a ser Vice-Presidente da Comissão, o que reforçaria o poder intergovernamental sobre o poder supranacional, motivo que deveria satisfazer os tão zelosos defensores das soberanias nacionais, em vez de os alarmar.
Menos ainda deve ser considerada a tão falada supremacia da Constituição Europeia sobre as Constituições nacionais, pela razão simples de que tudo quanto é direito constitucional comunitário prevalece já sobre o direito constitucional dos seus Estados-Membros. Experimentem estes, por exemplo, consagrar nas suas Constituições, no actual regime, o princípio da economia nacional dirigida e verão o que lhes sucede. Ou a necessidade de conversão do direito comunitário em direito interno por diploma legislativo nacional. Ou o fim do sufrágio universal para os órgãos de soberania nacional. Ou, como acontecia em Portugal há bem pouco tempo, a afirmação da propriedade privada como um mal menor que o Estado tolerava.
Será, por fim, que os receios provêm da livre circulação de pessoas, ou da moeda única e dos processos de decisão comunitária sobre política financeira e monetária? Mas será que não se ouviu falar de Schengen, nem da União Económica e Monetária decidida, ao fim de anos de adiamento, em Maastricht? E será, também, que se ignora o que possa ser a terceira fase da UEM, há muito convencionada e já materializada?
Mas se os receios preocuparam a opinião pública, as vantagens da aprovação da Constituição parecem ter passado ao seu lado. Vejamos algumas das que seriam mais significativas.
Em primeiro lugar, a existência de um texto constitucional uniforme, por si mesmo, traduzir-se-ia num ganho de transparência e democracia, porque faria terminar com a confusão reinante nesta matéria. Não foi por acaso que ao longo dos séculos as populações exigiam ao poder político documentos escritos onde as regras recíprocas estivessem patentes, fossem eles as «Cartas de Foral» medievais, ou as Constituições oitocentistas. Parece que, pela primeira vez na história política da Europa, se vai preferir deixar ao arbítrio dos detentores do poder a definição dessas regras.
Por outro lado, a Constituição estabelecia com clareza a repartição de competências entre a União e os Estados-Membros, isto é, o que era soberania comunitária e nacional, esclarecendo os procedimentos decisionais e os procedimentos respectivos a tomar. Como está, não se sabe ao certo quem manda aonde, ficando, como tem sido habitual, nas mãos dos Estados e do Conselho os «saltos» de competências (o «spill-over» funcionalista) a que já nos habituou. É pena que, mais uma vez, os cidadãos da Europa não queiram regras claras e prefiram deixar-se docemente nas mãos dos seus senhores?
Como, igualmente, ficará por consagrar o «direito de secessão», pela primeira vez previsto num texto comunitário, e que sempre tem sido uma das reclamações dos «soberanistas».
A simplificação dos procedimentos legislativos comunitários, até mesmo a sua nova designação mais conforme com a tradição legisladora europeia, seria um factor que permitiria aproximar os cidadãos da realidade comunitária, ao invés do sistema vigente que os distancia pela complexidade técnica que exige.
3. O Que Verdadeiramente Esteve em Causa.
É curioso verificar que os adeptos do «não» o são por uma incompreensível variedade de razões. Há de tudo, em boa verdade. Desde os que acham que a Constituição é um documento estranho à União, da autoria do diabólico Giscard, aos que a atacam por ser «liberal» e pôr em causa a «Europa social» (?), aos que a afirmam intervencionista e dirigista, etc.
Na verdade, o que sucede na maioria dos casos é que este debate apanha a Europa em recessão, o que leva as pessoas a responsabilizarem-na desse facto e, consequentemente, a reagirem-lhe negativamente fundamentando-o com os seus pontos de vista. O que está em causa é, efectivamente, a própria União Europeia, o modelo em que evoluiu e o seu futuro.
Também aqui, embora se possa (e deva, para quem assim pense) discordar do percurso percorrido, ninguém poderá manifestar ignorância ou surpresa. Desde os primórdios, nos Congressos de Montreaux (1947) e de Haia (1948), aos primeiros tratados e à sua evolução posterior, se sabe que a Europa comunitária seria uma Europa de integração e não de simples cooperação. Aqui reside toda uma diferença que, para quem conhecer a obra de Bela Balassa, «A Teoria da Integração Económica», dos princípios dos anos quarenta, não ignora duas coisas: que ela não poderá ser estática, isto é, pressupõe que uma etapa de integração bem sucedida avance, pelo interesse dos próprios visados, para outra; e que pressupõe a transferência de soberania para instituições supranacionais, logo, de poder político e não simplesmente económico.
Assim sendo, é de admitir que haja quem não goste deste caminho. Mas, nesse caso, terá de sugerir que percurso alternativo defende, caso o actual seja posto em causa. Esta é, do meu ponto de vista, a obrigação de quem vota contra a Constituição Europeia. A que se encontra no Tratado a referendar e a que está neste momento em vigor. Esse é o ponto verdadeiro do debate e, até hoje, é lamentável que ninguém se tenha pronunciado ainda a esse respeito.
Como é pena também que, por essa via, de algum modo, a evolução dos acontecimentos acabe condicionada pelos apetites presidenciais do Sr. Fabius, personagem certamente bem mais desagradável do que o antigo Presidente da República Francesa Valéry Giscard d'Estaing.