15.4.06

democracia: 12 tópicos

1. A democracia é mais, muito mais, do que um simples procedimento de escolha e selecção de governantes. È, também, um valor político e moral, porque pressupõe que todos os cidadãos de uma comunidade podem participar activa ou passivamente, de forma igualitária, nessa escolha.

2. A democracia tem, igualmente, um valor histórico inquestionável. Em seu nome e por sua causa bateram-se gerações inteiras: primeiro, pela introdução do sufrágio conducente à eleição das primeiras assembleias de representação restrita, logo a seguir, pelo seu progressivo alargamento, até ter atingido o universo dos cidadãos maiores e civilmente responsáveis.

3. A democracia possui muitas outras virtudes. Entre elas, a possibilidade de uma comunidade eleger pacificamente os seus representantes e afastar aqueles que governam sem turbulência. Nessa medida, ela é uma sofisticada forma de comportamento social ritualizado, progressivamente sedimentada ao longo dos anos por gerações compostas por centenas de milhares de indivíduos. Deve, por conseguinte, ser merecedora do nosso respeito e da nossa protecção.

4. Apesar dos seus múltiplos enunciados, a que já os clássicos se dedicavam, na sua formulação contemporânea, a democracia tem o seu ex-libris na regra de «um homem, um voto». Onde não vigore este postulado, ele mesmo um valor democrático estruturante, não se aceita a existência da democracia.###

5. Se sem democracia não existirá nunca liberdade, a liberdade não está, contudo, garantida pela existência da democracia. Como em seguida se tentará demonstrar, a própria exaltação racionalista do ideal democrático poderá ser um perigo fatal para a ideia da liberdade.

6. Em primeiro lugar, porque o que garante a liberdade não é tanto a forma de designação dos governantes, mas os poderes e o uso que eles desempenharão e que darão às suas funções. Pode-se, com verdade, alegar que onde exista democracia, quem fizer mau uso dos seus poderes poderá ser afastado. Porém, se isto poderia ser suficiente há cem anos atrás para assegurar a liberdade, poderá não chegar para a garantir nas sociedades complexas em que hoje vivemos.

7. De facto, é o uso do poder que determina a subsistência da liberdade, entendida esta no sentido liberal clássico na livre expressão de ideias e sentimentos, na segurança da vida em sociedade, na possibilidade de cada um poder dispor daquilo que é seu e, em suma, na propriedade plena de si mesmo e do que adquiriu legitimamente. Chame-se a este núcleo fundamental de direitos os «direitos fundamentais» ou outra qualquer coisa, é por esta razão que o contrato social instituidor da sociedade política foi feito e justifica manter-se.

8. Nem todas as sociedades onde vigora a eleição democrática dos governantes são compostas por homens livres. Em Roma, durante a fase da República, os magistrados eram anualmente eleitos e substituídos pelos cidadãos romanos, que dispunham já nessa altura do ius sufragii e do ius honorum. A Roma clássica não era, porém, uma sociedade de homens livres. Adolf Hitler foi eleito por uma razoável maioria de votos livremente expressos. A sociedade que o elegeu e que ele governou não era composta por homens livres e mesmo a parcela de liberdade que existia ao tempo da sua eleição para o cargo de Chanceler do Reich acabou por rapidamente desaparecer. Salvador Allende foi eleito democraticamente. O uso que deu ao poder que recebeu foi o da destruição das liberdades. Pinochet, que lhe sucedeu por meios violentos, acabou com o resto que sobrava embora, involuntariamente, tenha mais tarde permitido o regresso da democracia ao país.

9. A convicção de que o poder sufragado pelo voto universal legitima o seu uso irrestrito, porque está democraticamente fundamentado e será responsabilizado politicamente no fim do mandato, é o mais grave atentado dos nossos dias à liberdade. Sem que nos apercebamos, o governo põe e dispõe da nossa propriedade sem que à sua actuação sejam impostos entraves ou limites sérios. Pelo contrário, a invocação do «interesse público» por parte de quem governa, legitimando essa interpretação pelo voto popular, permite os mais graves atentados à propriedade, o mesmo é dizer, à liberdade.

10. Com base nestes pressupostos, as sociedades contemporâneas contribuem, em média, com mais de metade da sua produção anual para a despesa pública, sem contrapartidas proporcionais ou, tão pouco, que tenham sido avocadas pelo Estado a pedido, ou com expresso mandato, dos governados. Alteram-se os códigos, as leis, as normas de direito conforme a soberana vontade de quem governa e à exacta medida das suas necessidades e intenções. O direito não é estável, porque não corresponde a valores estruturantes da sociedade e dos indivíduos, como deveria suceder. Continuamos, como em Roma e no Absolutismo, a aceitar que a «lei é a vontade do príncipe» (do soberano) e não o conjunto de regras que vão evoluindo e que os próprios cidadãos foram elaborando ao longo do tempo, tendo em vista estabelecerem uma vida social pacífica e proveitosa.

11. Uma sociedade liberal deve aceitar a democracia como um, porventura o mais significativo, entrave ao expansionismo do poder público. Não deve aceitá-la como justificação para tudo o que os governos pretendem, menos ainda julgar que ela é bastante e suficiente para garantir a liberdade.

12. O fascínio pelas regras formais da democracia e a absoluta rendição aos poderes que ela ciclicamente legitima, poderá transformar-se no embrião de um novo totalitarismo.