14.4.06

O Massacre de Lisboa



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«(...) Tudo isto criava um estado de efervescência de que resultou afinal a comoção popular de 19 de Abril de 1506, com o morticínio e saques de que foram vítimas os conversos, engrossada na ocasião a escumalha da cidade pelas tripulações de muitos navios que se achavam no porto, alemães, holandeses e franceses, gente de condição ruim, que porventura excedia ainda a população nativa na ânsia da rapina e ferocidade. Deu origem à catástrofe um suposto milagre na igreja de S. Domingos. Alguns fiéis julgaram ver que certo crucifixo irradiava um brilho singular, e logo bradaram ser prodígio. Um dos presentes, menos exaltado, tentou explicar o facto por mero efeito a luz. Por fatalidade, era cristão-novo. E acrescentou, ao que contam: Como há-de um pau seco fazer milagres? Se assim foi, provou audácia desmedida. O caso é que, num repente, tomado pelos cabelos, impelido para o adro, a golpes o mataram, e dali arrastado até ao Rossio puseram-no a queimar em uma fogueira que mãos diligentes acenderam. Dois frades, entretanto, vociferavam contra o sacrilégio, e em frases inflamadas excitavam a turba a vingar as mil ofensas dos hereges à religião. Não era preciso tanto para levar a extremos a fúria do fanatismo. Deu-se a explosão de ódios comprimidos por anos e séculos. Todos os conversos encontrados na rua e refugiados nas igrejas caíam a golpes de bandos de assassinos, e os corpos, alguns semivivos, consumiam-nos as fogueiras, cujo número ia aumentando com o das vítimas. Em seguida, foram buscá-los às casas, onde tudo roubavam ou destruíam. Quando faltaram os hebreus, assaltaram os cristãos-velhos. Alguns destes a custo salvaram as vidas, mostrando que não eram circuncisos. No dia imediato, a multidão sanguinária tinha consideravelmente aumentado com o concurso de gente dos subúrbios, que, atraída pela pilhagem, vinha tomar parte na horrenda saturnal. O resto da população, a parte sã dos habitantes, indiferente ao princípio, e quiçá simpática ao movimento, afinal aterrada, encerrava-se em casa, temendo já pela própria segurança. Assassínios, estupros e saques continuaram até à tarde do terceiro dia, em que a horda dos perversos se dissolveu, parte deles vencidos pela fadiga, parte temerosa da força armada, que vinha de fora restabelecer a ordem na cidade. A repressão foi rápida e severa, executando-se a pena capital em cerca de cinquenta miseráveis. Os dois frades, que tinham açulado a revolta, foram a morrer queimados. Sobre o número das vítimas, sacrificadas ao ódio bestial da canalha, variam os cálculos. Damião de Góis diz mil e novecentas pessoas, o hebreu Samuel Usque, quatro mil. É de supor que, como sempre em casos semelhantes, ambos os números excedam a realidade. Além das sentenças judiciárias, D. Manuel manifestou o descontentamento para com a cidade, declarando-a destituída dos títulos de nobre e sempre leal, e privando-a de alguns privilégios, entre os quais o de eleger os Vinte e quatro, ao mesmo passo que aos moradores em geral impunha a multa de um quinto de todos os seus haveres. No conflito destacavam-se pelo encarniçamento as mulheres. O rei recomendou que a vinte ou trinta delas se desse a pena morte. O mosteiro de S. Domingos de Lisboa, de onde saíram os frades que instigaram à chacina, foi provisoriamente encerrado, dividindo-se por várias casas da comunidade os seus habitadores. (...)».

J. Lúcio de Azevedo (1855-1933), em 1921, in «História dos cristão-novos portugueses, «Obras Completas de J. Lúcio de Azevedo», Clássica Editora, 3ª edição, Lisboa, 1989

Nota 1: ver outros textos alusivos na Rua da Judiaria
Nota 2:Foi neste «progrom» que tomei conhecimento pela primeira vez deste evento. Sugerida, com bastante antecedência, a ideia de se assinalar a data, aqui. Também interessante este «Excerto...»