A constituição política de uma comunidade (evitamos, intencionalmente, o termo «Estado», visto existirem exemplos de Constituições políticas que o transcendem) é o seu estatuto fundamental, pelo qual se rege a organização política e no qual se enunciam os direitos fundamentais que o poder deve assegurar. Trata-se, portanto, do contrato estabelecido entre a comunidade e o poder político, onde se encontram as normas do «pactum societatis» que obriga as partes, e os princípios metapolíticos em que se fundamentam.
Sendo, assim, um documento estruturante fundamental da sociedade, ele deve representar o máximo denominador comum entre os seus membros, os que estão vivos, os que já morreram e os que hão-de nascer, devendo fundar-se numa tradição consolidada, em vez de ser fruto de repentismos revolucionários e fractais.
Por uma regra de puro bom senso, uma Constituição política não deve ultrapassar os limites do essencial: a estruturação do poder, as funções que deve cumprir, os limites que tem de respeitar e os direitos individuais fundamentais que nunca poderá pôr em causa.
No século XIX, quando o movimento constitucional eclodiu em grande escala, após as duas primeiras Constituições escritas dignas desse nome (a americana de 1787 e a francesa de 1791), o constitucionalismo era visto, e bem, como uma forma de limitar o poder. Nessa altura, como lembra Hayek no The Constitution of Liberty, Constituição era sinónimo de poder limitado. Esta limitação fazia-se de duas maneiras evidentes: a separação de poderes e funções entre os órgãos de soberania, e o reconhecimento dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade. A participação política, embora reservada à burguesia e aos contribuintes, foi consagrada e evoluiu no sentido de alargar a democracia burguesa predominante no século XIX, para a democracia representativa universal da centúria seguinte.###
Nestes termos e com estas funções, parece óbvio que o papel das Constituições não deve ser alargado, de modo a quase transformar-se num programa político partidário. Contudo, foi isso que sucedeu, precisamente a partir da Constituição de Weimar de 1819, que consagrou o primeiro modelo de Constituição social europeia moderna.
A partir daqui, a Constituição contemplou direitos «fundamentais» de segunda e terceira geração, passou a programar a vida das comunidades a que se destina, desenvolveu subsistemas constitucionais a que geralmente se dão os nomes de «Constituição Económica», «Constituição Social», «Constituição Laboral», em suma, passou a programar em vez de organizar.
O Estado, por esta via, ampliou substancialmente os seus domínios de ingerência no tecido social, passando a «garantir» emprego, saúde, habitação, educação, ambiente, celeridade administrativa e muitos outros doravante considerados «direitos fundamentais». Enunciou, também, os limites a que a propriedade e a liberdade passam a ter de obedecer, no primeiro caso, todos quantos sejam necessários ao cumprimento das funções sociais do Estado (interpretadas e executadas, momento a momento, por quem governa), e, no segundo, impondo sérios limites ao acesso ao rendimento e à conservação da propriedade individual. A Constituição passou a ser, assim, mais do que um instrumento de limitação do poder político e de consolidação da identidade comunitária, um meio ao serviço daquele poder tendo em vista conter a liberdade individual e societária, transformando-se num factor de divisão e não de união.
Quando a Constituição que instaurou a III República portuguesa foi promulgada há trinta anos, em 2 de Abril de 1976, o documento que estruturou politicamente a nossa comunidade foi, naturalmente, deste último tipo. Diziam, ao tempo, aqueles que se entusiasmavam com ela, que o seu conteúdo era «dos mais avançados do mundo», senão até o mais evoluído, por se ter preocupado em definir um vastíssimo elenco de direitos fundamentais sociais, por limitar seriamente a propriedade privada, tolerando-a em relação às propriedades pública e cooperativa, por afirmar os valores políticos do socialismo como fim societário. Obviamente que este texto era, mesmo à luz daqueles tempos aziagos, vergonhoso, dogmático, intolerante e totalitário.
A evolução das coisas permitiu que a Constituição fosse, ela própria, melhorando e perdendo alguns dos seus mais abomináveis tiques. Mas, como o cuidado com a criança era imenso, foi-se mexendo nela com muita cautela, defendendo Jorge Miranda, um dos pais do repolho, que em sede de revisão constitucional, o poder soberano só poderia tocar-lhe nalguns aspectos fundamentais por via de uma «dupla revisão», isto é, primeiro alterando algumas normas que limitavam os poderes de revisão e, depois, alterando as partes que o legislador constituinte permitira no texto original. A criança era sensível e podia-se constipar. Todo o cuidado com o trambolho não era demais.
Quer isto dizer que a Assembleia Constituinte de 1975 arrogou-se no direito de impor o seu modelo de organização e ideologia política aos portugueses do seu tempo e aos vindouros. De tal modo, que por lá deixou um artigo, actualmente o 288º (limites materiais da revisão), que proíbe definitivamente a alteração de um conjunto de postulados arvorados em traves mestras do novo regime. Entre os mais repugnantes e totalitários são de realçar: a forma republicana de governo (al. b); Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (al. e); a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção (al. f); a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista (al. g); o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional (al. h).
O primeiro destes limites considera a monarquia como uma forma não democrática de exercício do poder, conceito obviamente ultrapassado, no mundo ocidental e em Portugal, pelo menos, desde 1834. O segundo tem servido para manter uma legislação laboral caduca, ultrapassada e que é um dos principais motivos que justificam o subdesenvolvimento português. O terceiro impõe-nos a propriedade pública e cooperativa, queiramos ou não mantê-las. A quarta remete-nos para a planificação económica estadual. E a última inibe, de facto, modificações substanciais do nosso sistema eleitoral, proibindo que se toque nessa «vaca sagrada» do método de Hondt, encontrado, ao tempo, como forma de garantir a representatividade dos pequenos partidos, em especial, do Partido Comunista.
Ora, com todos estes espartilhos e tendo o legislador constituinte feito coincidir a revisão destas normas com a subsistência do regime, isso significa que só é possível modificá-la declarando o fim da III República. Como se pode fazer isso por meios pacíficos, ainda não se descobriu. Mas que já é mais do que tempo de reassumirmos, sem limitações, o poder constituinte soberano, também parece óbvio. Entretanto, a «peça» constitucional que nos foi legada em 1976, continua a impor sérias restrições à nossa liberdade e aos nossos direitos fundamentais, nomeadamente o direito e a liberdade de a não querermos.
Hitler queria legar-nos um Reich para mil anos. Os constituintes de 1976 deixaram-nos uma Constituição para a eternidade.
Sendo, assim, um documento estruturante fundamental da sociedade, ele deve representar o máximo denominador comum entre os seus membros, os que estão vivos, os que já morreram e os que hão-de nascer, devendo fundar-se numa tradição consolidada, em vez de ser fruto de repentismos revolucionários e fractais.
Por uma regra de puro bom senso, uma Constituição política não deve ultrapassar os limites do essencial: a estruturação do poder, as funções que deve cumprir, os limites que tem de respeitar e os direitos individuais fundamentais que nunca poderá pôr em causa.
No século XIX, quando o movimento constitucional eclodiu em grande escala, após as duas primeiras Constituições escritas dignas desse nome (a americana de 1787 e a francesa de 1791), o constitucionalismo era visto, e bem, como uma forma de limitar o poder. Nessa altura, como lembra Hayek no The Constitution of Liberty, Constituição era sinónimo de poder limitado. Esta limitação fazia-se de duas maneiras evidentes: a separação de poderes e funções entre os órgãos de soberania, e o reconhecimento dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade. A participação política, embora reservada à burguesia e aos contribuintes, foi consagrada e evoluiu no sentido de alargar a democracia burguesa predominante no século XIX, para a democracia representativa universal da centúria seguinte.###
Nestes termos e com estas funções, parece óbvio que o papel das Constituições não deve ser alargado, de modo a quase transformar-se num programa político partidário. Contudo, foi isso que sucedeu, precisamente a partir da Constituição de Weimar de 1819, que consagrou o primeiro modelo de Constituição social europeia moderna.
A partir daqui, a Constituição contemplou direitos «fundamentais» de segunda e terceira geração, passou a programar a vida das comunidades a que se destina, desenvolveu subsistemas constitucionais a que geralmente se dão os nomes de «Constituição Económica», «Constituição Social», «Constituição Laboral», em suma, passou a programar em vez de organizar.
O Estado, por esta via, ampliou substancialmente os seus domínios de ingerência no tecido social, passando a «garantir» emprego, saúde, habitação, educação, ambiente, celeridade administrativa e muitos outros doravante considerados «direitos fundamentais». Enunciou, também, os limites a que a propriedade e a liberdade passam a ter de obedecer, no primeiro caso, todos quantos sejam necessários ao cumprimento das funções sociais do Estado (interpretadas e executadas, momento a momento, por quem governa), e, no segundo, impondo sérios limites ao acesso ao rendimento e à conservação da propriedade individual. A Constituição passou a ser, assim, mais do que um instrumento de limitação do poder político e de consolidação da identidade comunitária, um meio ao serviço daquele poder tendo em vista conter a liberdade individual e societária, transformando-se num factor de divisão e não de união.
Quando a Constituição que instaurou a III República portuguesa foi promulgada há trinta anos, em 2 de Abril de 1976, o documento que estruturou politicamente a nossa comunidade foi, naturalmente, deste último tipo. Diziam, ao tempo, aqueles que se entusiasmavam com ela, que o seu conteúdo era «dos mais avançados do mundo», senão até o mais evoluído, por se ter preocupado em definir um vastíssimo elenco de direitos fundamentais sociais, por limitar seriamente a propriedade privada, tolerando-a em relação às propriedades pública e cooperativa, por afirmar os valores políticos do socialismo como fim societário. Obviamente que este texto era, mesmo à luz daqueles tempos aziagos, vergonhoso, dogmático, intolerante e totalitário.
A evolução das coisas permitiu que a Constituição fosse, ela própria, melhorando e perdendo alguns dos seus mais abomináveis tiques. Mas, como o cuidado com a criança era imenso, foi-se mexendo nela com muita cautela, defendendo Jorge Miranda, um dos pais do repolho, que em sede de revisão constitucional, o poder soberano só poderia tocar-lhe nalguns aspectos fundamentais por via de uma «dupla revisão», isto é, primeiro alterando algumas normas que limitavam os poderes de revisão e, depois, alterando as partes que o legislador constituinte permitira no texto original. A criança era sensível e podia-se constipar. Todo o cuidado com o trambolho não era demais.
Quer isto dizer que a Assembleia Constituinte de 1975 arrogou-se no direito de impor o seu modelo de organização e ideologia política aos portugueses do seu tempo e aos vindouros. De tal modo, que por lá deixou um artigo, actualmente o 288º (limites materiais da revisão), que proíbe definitivamente a alteração de um conjunto de postulados arvorados em traves mestras do novo regime. Entre os mais repugnantes e totalitários são de realçar: a forma republicana de governo (al. b); Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (al. e); a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção (al. f); a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista (al. g); o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional (al. h).
O primeiro destes limites considera a monarquia como uma forma não democrática de exercício do poder, conceito obviamente ultrapassado, no mundo ocidental e em Portugal, pelo menos, desde 1834. O segundo tem servido para manter uma legislação laboral caduca, ultrapassada e que é um dos principais motivos que justificam o subdesenvolvimento português. O terceiro impõe-nos a propriedade pública e cooperativa, queiramos ou não mantê-las. A quarta remete-nos para a planificação económica estadual. E a última inibe, de facto, modificações substanciais do nosso sistema eleitoral, proibindo que se toque nessa «vaca sagrada» do método de Hondt, encontrado, ao tempo, como forma de garantir a representatividade dos pequenos partidos, em especial, do Partido Comunista.
Ora, com todos estes espartilhos e tendo o legislador constituinte feito coincidir a revisão destas normas com a subsistência do regime, isso significa que só é possível modificá-la declarando o fim da III República. Como se pode fazer isso por meios pacíficos, ainda não se descobriu. Mas que já é mais do que tempo de reassumirmos, sem limitações, o poder constituinte soberano, também parece óbvio. Entretanto, a «peça» constitucional que nos foi legada em 1976, continua a impor sérias restrições à nossa liberdade e aos nossos direitos fundamentais, nomeadamente o direito e a liberdade de a não querermos.
Hitler queria legar-nos um Reich para mil anos. Os constituintes de 1976 deixaram-nos uma Constituição para a eternidade.