2.3.05

Quando a realidade imita a arte (reposição)

A propósito dos partidos de direita que viram à esquerda, dos católicos que defendem reformas protestantes e dos militantes de direita que aderem ao eanismo.

[O Coronel Aureliano Buendía] ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos e, embrulhado numa manta de lã, escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, que se renunciasse à revisão dos direitos de propriedade das terras para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, em segundo lugar, que se renunciasse à luta contra a influência clerical para obter a solidariedade do povo católico. Pediam, por fim, que se renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos, para preservar a integridade dos lares.

--Quer dizer -- sorriu o coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura -- que só estamos a lutar pelo poder.

--São reformas tácticas -- replicou um dos emissários -- Por agora, o essencial é dilatar a base popular da guerra. Depois se verá.

Um dos assessores políticos do coronel Aureliano Buendía apressou-se a intervir.

-- É um contra-senso -- disse -- Se estas reformas são boas, quer dizer que o regime conservador é bom. Se com elas conseguimos dilatar a base popular da guerra, como vocês dizem, quer dizer que o regime tem uma imensa base popular. Quer dizer, em resumo, que durante quase 20 anos estivemos a lutar contra os sentimentos da nação.

Ia prosseguir, mas o coronel Aureliano Buendía interrompeu-o com um gesto. «Não perca tempo, doutor», disse. «O importante é que a partir deste momento só lutamos pelo poder». Sem deixar de sorrir, pegou nas folhas que os emissários lhe entregaram e dispôs-se a assinar.

-- Uma vez que assim é -- concluiu --, não temos nenhum inconveniente em aceitar.

in Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez