«A palavra 'tragédia' significa, talvez, o canto declamado por ocasião do sacrifício do bode (tragos)».
Vernant, J.P. & Vidal-Naquet, P. - Mito e Tragédia na Grécia Antiga, (1991)
Da palavra "tragos" deriva o termo "tragédia".
Fado ou Tragédia?
Na Grécia Antiga, e num momento em que ao nível da cidade-estado ocorriam profundas transformações na organização social, difundiu-se um género teatral que sobrevive até hoje: a Tragédia.
O país tem vivido, no último mês, uma verdadeira tragédia grega, temperada com um grau de dramatização bem lusitano, cujo enredo gira à volta das contas públicas.
José Sócrates, talvez inspirado no seu próprio nome, decidiu recuperar para o palco político nacional este género teatral que, já nos seus primórdios, se havia enraizado na estrutura do próprio Estado. Na verdade, as cidades-estado gregas apoderaram-se da tragédia, a qual funcionou como instrumento político da polis para desmistificar certas lendas que afastavam o cidadão comum da ordem ética subscrita pela aristocracia.
"Conhece-te a ti mesmo", rezava Sócrates, o grego, num apelo à moderação aos devotos de Dionísio, que após a dança vertiginosa, caíam desfalecidos, num processo de "ékstasis", que pensavam ser de superação da sua condição anacleta, digo, humana.
"Haverá vida para além do défice?"
Jorge Sampaio diz "que há vida para lá do défice". Haverá vida, provavelmente. Admito, também, que haja vida em Marte. Ainda não percebi bem, contudo, em que medida isso atenua a gravidade da doença crónica que afecta as contas públicas: esta doença, não sei se ela é trágica, no sentido contemporâneo do termo; mas se optarmos pela abordagem teatral grega, podemos claramente afirmar que é, certamente, um "bode" velho, que teima em não morrer, e cujo sustento começa a dar uma despesa que o país já não consegue suportar.
"A tragédia do bode velho do défice português"
Teatralizando, vamos imaginar que o país é como uma família que "escolheu" - ou antes, para acalmar consciências, "herdou" - um animal de estimação pouco comum: um "bode". Aqui, o orçamento da família é tipicamente português: escasso; daí que para "dar de comer ao bode" seja necessário sacrificar uma parte significativa dos recursos disponíveis.
No seu seio formou-se um consenso generalizado: o bode só atrapalha. Nesta família, onde já todos ralham e poucos têm razão, há quem queira pôr o bode de dieta; a maioria da família está, contudo, contra; esta facção maioritária da família acha que o melhor é continuar a alimentá-lo com bom pasto, na esperança que ele venha ainda a dar algum proveito: "É uma insensibilidade não dar de comer ao animal", dizem com ar cândido. Paradoxalmente - não estivéssemos numa tragédia grega - alguns dos familiares (na sua grande parte, favoráveis à manutenção do status do animal) usam, curiosamente, uma máscara de "bode", que os identifica enquanto grupo maioritário. Existe, ainda, uma parte da família que consegue conceber perfeitamente a sua vida sem um "bode" de estimação que lhes suga metade do rendimento e que nem sequer dá leite; este grupo propõe uma solução que resolvia o problema de vez: "Que tal se matássemos o bode?".
A decisão final, contudo, está nas mãos do actor principal: José Sócrates. Como bom socialista e homem das Beiras, Sócrates sempre concebeu a sua vida com um "bode"; chegou até a defender que a solução ideal passaria sempre por acarinhar o "bode", esperando que ele, apesar de velho, crescesse e fosse capaz de ultrapassar a artrite e o apetite voraz que ainda o mantém vivo. Só que todos os veterinários que consulta dão-lhe duas alternativas apenas: o mero abate; ou, pelo menos, uma perda significativa de peso, a prazo; de contrário, não só morre o "bode" de excesso de peso, como a família de fome. O nosso actor principal está ainda a ser pressionado por deuses menores "bruxelenses" para que actue em conformidade.
Como em qualquer tragédia grega, o herói - José Sócrates - está a ser punido pelos deuses com a "até", com a "cegueira da razão". À semelhança de Édipo, no momento em que recebeu as recomendações do Oráculo de Delfos, José Sócrates está numa encruzilhada. De nada adianta, porém, pois tudo o que fizer, reverterá contra si próprio.
Na verdade, ou opta por cumprir o seu programa de governo - e então, no final da legislatura, estaremos todos mais pobres, na companhia de um bode mais velho e ainda mais esfomeado, alimentados de socialismo - ou abdica já das promessas eleitorais, segue as recomendações do Ministro das Finanças e começa a trilhar o caminho do liberalismo.
É que, por mais exercícios que se façam, não é possível reduzir o défice, manter o nível de impostos, aumentar a produtividade sem reduzir o nível de prestação de serviços públicos e de investimento público. José Sócrates sabe ainda que tem nas mãos uma pesada herança: um país que nos anos 80 optou por um modelo de crescimento keynesiano, assente em fundos estruturais, obras públicas e empresas de capital intensivo, fortemente expostas ao exterior, e onde a educação serviu mais quem ensina do que quem aprende. Sabe que neste modelo de crescimento, e com os recursos humanos de que o país dispõe, o choque tecnológico não será o maná de que o país precisa. Sabe - ou alguém lhe está a ensinar - que Keynes só sobreviveu porque durante anos o défice mais não era do que uma miragem que se empurrava para o longo prazo. Infelizmente, o "bode" já não "pasta" no horizonte, "no outro lado da colina": instalou-se à porta de casa, e não para de comer!
Será que nesta tragédia viveremos uma "catarse"?
Eu, da minha parte, não tenho dúvidas. Apelo já a José Sócrates que esqueça o seu programa de governo, e implemente no país um novo modelo de desenvolvimento. Isso implica fortes custos de ajustamento? Sim. Mas prefiro viver uma dolorosa catarse rumo ao futuro do que "empobrecer alegremente" num país transformado numa enorme "Quinta das Celebridades", trabalhando para alimentar animais domésticos que não sustentam ninguém e rodeado de homens e mulheres movidos pela intriga, lutando pelas migalhas que sobram.
Faça-nos a todos um favor. Ouça o que lhe tem a dizer o "Oráculo de Delfos". Não se deixe tomar pela "cegueira da razão". Afaste-se de Dionísio e de Baco. Não vale a pena ignorar aquilo que está escrito nos manuais. Poderá não cair nas graças de alguns homens e de deuses menores. Cairá, certamente, nas boas graças das gerações que querem o futuro: essas, desde já, agradecem-lhe.
Rodrigo Adão da Fonseca