10.5.05

RELATIVISMO E ÉTICA LIBERAL




1. Um dos erros mais recorrentes sobre o liberalismo que, em parte, é grandemente responsável pela desconfiança com que é visto em Portugal, está em considerá-lo ideologicamente inerte, uma espécie de panaceia de indiferentismo geral, identificando-o com o relativismo. Para quem assim julga, o liberalismo consagraria um princípio geral de liberdade absoluta e de completa tolerância em relação a todas as expressões da natureza humana, sejam elas políticas, religiosas, sexuais, comportamentais, ou outras. O que interessa salvaguardar, pensando assim, é um princípio de liberdade individual total, segundo o qual cada um poderá dispor de si mesmo e do seu futuro como bem entender, desde que não afecte nem atinja prejudicialmente a liberdade de terceiros. Donde, o liberalismo não teria outros dogmas que não o da absoluta liberdade, não conheceria outros princípios que não o da completa indiferença perante todos os pontos de vista, não tomaria posição sobre nada que não fosse a intransigente defesa da liberdade de expressão de todas e quaisquer posições que na sua vasta amplitude fossem afirmadas. O liberalismo seria, em síntese, um caldo de cultura anódino e inerte, onde pululariam tudo e todos, sendo o seu único ponto de vista a defesa de que cada um pudesse fazer e dizer o que bem lhe apetecesse.

2. Obviamente que o liberalismo não é nada disto, embora não se possa dizer que seja o oposto simétrico de tudo isto, ou mesmo de algum destes pressupostos. Ou seja, o facto de o liberalismo defender a liberdade individual de pensamento e da sua expressão, assim como a soberania individual como regra quase absoluta, não quer dizer que lhe seja indiferente o que se pense, o que se diga, ou o que se faça. Ao contrário, quer sobre as grandes questões gerais que se colocam sobre o homem e a sociedade, quer quanto às múltiplas dimensões em que se desdobram, o liberalismo tem algo a dizer e princípios a defender. Não os impõem a quem os não deseja seguir, nem julga que alguém possa ser forçado, ainda que pela «força legítima» do Estado, a obedecer-lhes. Porém, na sua própria escatologia, na sua ética, o liberalismo tem valores, distingue o que é bom do que é mau, e defende o que julga ser, caso a caso, o melhor caminho a seguir.

3. Admitamos que muitas vezes estes equívocos nascem mesmo dentro de portas. Não tanto, como se poderia pensar, em defesa do relativismo geral, mas presumindo que ele se encontra onde não está, como acontece com Richard A. Epstein, que no seu livro Skepticism and Freedom ? A Modern Case for Classic Liberalism define aquilo a que chama «relativismo moral» não como a atitude de «embrace positions that are repugnant to the world at large», mas sim a de proclamar «that there are no authoritative moral gRounds on which to attack these positions» (p. 67). Daqui Epstein conclui que a posição de princípio da não-intervenção, sustentada numa epistemologia realista de que o conhecimento é por natureza limitado, e que, por consequência, o poder de decisão, exercido sobre pessoas e situações que não se podem conhecer exaustivamente, deverá ser igualmente muito restringido, revela um grave relativismo moral. Para ele, Hayek será, portanto, o primeiro relativista, e a descrição que o professor da Escola de Viena faz do que chamou a «Grande Sociedade», a «ordem natural e espontânea» que ela constitui, e a evolução ordinalista das regras comportamentais que, pelo seu lado, devem ser o pano de fundo essencial da ordem jurídica, é a Grande Blasfémia, ou, utilizando as suas palavras, uma «near mystical appreciation» da ordem social.

4. Hayek não carece naturalmente de defesa. Menos ainda quando sobre ele impendem acusações de relativismo, quando toda a sua obra é não só afirmativa de valores e de regras sociais, como antagonista da «grande e fatal presunção» que é o socialismo e o dirigismo. Porém, da sua defesa nesta particular argumentação, talvez possa resultar mais evidente o que distingue o relativismo do liberalismo e da ética que o suporta.

5. Na tradição dos grandes autores do liberalismo clássico, Hayek preconiza a defesa de valores humanos e sociais fundamentais e inquestionáveis. A liberdade, a propriedade, os direitos fundamentais, o princípio geral da não intervenção, a soberania individual, o individualismo, as regras jurídicas de aplicação geral e abstracta, o mercado livre como espaço não intervencionado de conformação das vontades individuais. A contrario sensu, Hayek e os liberais rejeitam o colectivismo, a aniquilação dos direitos individuais, as restrições à propriedade em nome de interesses colectivos politicamente determinados, a propriedade pública, etc. Na decisão política ou nas escolhas individuais, um liberal orientar-se-á por esta ordem de princípios e não por uma outra qualquer ao gosto da liberdade individual. Assim, embora devam respeitar-se as escolhas que cada indivíduo faz em sociedade, agindo ou não politicamente, ao liberalismo não é indiferente ou irrelevante que se proponha ou opte por um outro tipo de caminho.

6. No fim de contas, estes valores são constantes ao longo da história da teoria política liberal. Se olharmos, por exemplo, para o que Locke escreveu em finais do século XVII, encontramo-los claramente enunciados, ocupando, de resto, o cerne de toda a sua cosmologia filosófica e política. Quando, no seu Essay Concerning Toleration, Locke escreve que as premissas sobre as quais funda a actuação, os fins e os limites do poder político (ou o poder dos magistrados) são «a garantia da paz civil e a defesa da propriedade», está a consagrar os princípios estruturantes de uma ordem liberal. E, ao afirmar, no segundo tratado do díptico Two Treatises of Governement, que, por contrapartida a um Rei injusto, «o Rei justo e recto reconhece que ele existe unicamente para procurar e preservar a riqueza e propriedade do povo», ele distingue entre poder político legítimo e ilegítimo, segundo a doutrina do liberalismo. Estes princípios estão, de uma forma ou de outra, patentes em todos os autores catalogáveis como «liberais clássicos», desde os tempos de Locke (ou, mesmo, antes dele, como, por exemplo, sucedeu com a generalidade dos autores da Segunda Escolástica), até aos nossos dias. Cite-se, por exemplo, Ludwig von Mises: «A acção governamental, segundo o liberalismo, deve constranger-se a proteger a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade privada contra todas as formas de assalto» (Liberalismo, 1927).

7. A questão que deve então colocar-se, uma vez aceite a existência de uma estrutura valorativa estável no liberalismo, será a de saber como e porque razão se chega a esses e não a outros valores. Convém aqui reforçar, argumentando contra os que acham que o liberalismo é relativista, que estes são os valores liberais fundamentais e indeclináveis de uma sociedade verdadeiramente livre. Porquê estes e não outros, é o que explica a existência de uma ética liberal.

8. A resposta evidente só poderá ser uma: porque os liberais entendem que estes são os valores que melhor satisfazem a existência humana e a sua realização em sociedade. Obviamente que, caso o não pensassem, optariam por outro caminho. Mas, mais do que escolhas políticas, ou opções com relevo filosófico, para o liberalismo este acervo valorativo está gravado no âmago da natureza humana. Contrariar a propriedade ou a liberdade, como o fizeram (e fazem) as ditaduras colectivistas, socialistas ou fascistas, é negar ao homem a sua identidade, a sua condição de humanidade, o seu direito natural, ou antes, o direito à sua natureza. Essas sociedades fruto de experiências colectivistas acabam, cedo ou tarde, por implodir nas suas próprias contradições. Ao contrário do que Marx previu como sendo o fim da história e do capitalismo, foi, no fim de contas, o seu construtivismo político que, ao negar o património genético-político do homem, se condenou a si próprio.

9. Posta a questão nestes termos, ela assume efectivamente uma dimensão moral e ética, ou, como Epstein exageradamente lhe chamou, uma interpretação quase «mística» da fenomenologia social. Verdadeiramente, o misticismo não é para aqui chamado, já que em parte alguma Hayek, ou os liberais clássicos, fundamentam a ordem social que preconizam em forças metafísicas ou que não sejam intrinsecamente humanas. Isto, muito embora alguns deles sejam ou tenham sido homens crentes em Deus, e tenham considerado a natureza humana uma expressão da Sua vontade, para eles e para o liberalismo, ela é, contudo, determinada por factores absolutamente humanos e que não carecem da intervenção divina como justificação. O liberalismo prescinde, portanto, de qualquer derivada religiosa ou metafísica para se fundamentar.

10. Mas, ele já não prescindirá de uma directriz moral. A este propósito, Dahrendorf proclamou, numa palestra realizada em 1992, em Itália, sob o nome de Moralidade, Instituições e Sociedade Civil, que «a moralidade diz-nos o que almejar e o que evitar: não só inspira a decência e a humanidade na vida quotidiana, como também o desejo de ver as oportunidades ampliarem-se a todos os seres humanos». Por outras palavras, Mises terá dito o mesmo: «a moral consiste em acatar aquelas normas que a convivência social exige respeitar» (Liberalismo).

11. Quando Hayek fala na «ordem social e espontânea» conformadora da «Grande Sociedade» em que vivemos, ele está a descrever o processo de selecção de normas estruturantes das sociedades livres. Se, de facto, os homens puderem reger-se livremente, com o mínimo de intervenção pública, em regime de mercado, eles saberão seleccionar os melhores procedimentos, as soluções mais adequadas, as opções mais sensatas e equilibradas para todas as partes envolvidas. Este plano, em que as partes agem numa posição de igualdade, eventualmente tutelada e assegurada por uma autoridade fiscalizadora, é desvirtuado pela intervenção do Estado suportada por um ius imperii que ninguém pode eficazmente controlar, e que, mais do que um mediador, acabará por se constituir em parceiro interessado e parcial.

12. As «regras de justa conduta» que resultam da vida de uma sociedade livre são, em bom rigor, o seu direito natural, e encerram a sua dimensão moral e ética. Os valores que dela resultam constituem, segundo a óptica liberal, princípios estruturantes que os Estados não só devem observar, como devem fazer cumprir, por via das suas instituições e instâncias normativas e judiciais. Isso é, como Locke bem referiu, aquilo, e só aquilo que é pedido ao Estado e aos seus magistrados que façam. O que, tendo em conta o mundo em que vivemos e a usurpação de funções que o Estado contemporâneo praticou, não é tarefa pequena. O liberalismo deverá, portanto, pugnar pelo regresso dos valores que defende, ou seja, pela defesa da sua visão moral e ética do homem e da sociedade, contrariando o relativismo estatista e colectivista em que vivemos, segundo o qual a natureza humana se conforma à vontade suprema do soberano, independentemente do que ela possa ser.