3.4.06

Conflitos de interesse na Medicina Académica -5

1. Introdução.
2. A Medicina Académica e a sua tripla responsabilidade.
3. Entidades envolvidas.
4. Disclosure.

5. Investigação e ensino.
A investigação científica é uma actividade inserida num contexto internacional, o mesmo é dizer, existe uma concorrência internacional para a obtenção de novos conhecimentos. Tal concorrência sofreu um incremento exponencial nas últimas décadas, com a entrada em jogo de um número crescente de actores, com proveniência em cada vez mais países, territórios e entidades.

A assinalável concorrência existente no sector leva a que possa ser altamente vantajoso para um qualquer centro de investigação dispor de ferramentas que não se encontrem disponíveis para os restantes centros. Entre tais ferramentas poderão contar-se novas moléculas, não disponíveis de forma generalizada; produtos de biotecnologia, de uso igualmente reservado; aparelhagem e dispositivos de vária ordem, de natureza inovadora e ainda não comercializados. O acesso a ferramentas, cobertas por patentes, pertencentes a entidades várias de natureza não académica, pode ser altamente vantajoso para um CMA. Por essa razão, as colaborações institucionais academia/indústria têm lugar, desde há décadas, nos países com maior potencial para a inovação.
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Contudo, se os investigadores do CMA se encontram ligados à entidade que detém a patente (e o correspondente interesse comercial), através de relações de consultadoria, de natureza profissional, envolvendo palestras pagas, ou através de uma participação financeira, pode estabelecer-se um conflito de interesse.

Poderá ser oportuno, neste contexto, mencionar o conceito de R.A. Rettig, segundo o qual surgiu o fenómeno da "Industrialization of clinical research" (5), ou seja, a investigação médica transformou-se numa verdadeira indústria, envolvendo meios cada vez mais importantes. Verifica-se, no que respeita aos E.U.A., que a percentagem dos custos da investigação suportados pelo estado e a parte suportada pela indústria sofreu uma troca nas suas posições relativas, sendo a segunda actualmente predominante, ao contrário do que sucedia algumas décadas atrás. Quando uma actividade desenvolvida a um nível "artesanal" se transforma numa actividade industrial, quem não evoluir corre o risco de não conseguir competir. É por esta razão que múltiplos CMA têm apostado numa crescente colaboração com a indústria: esta poderá ser vista como a única entidade com capacidade financeira para permitir ao CMA manter-se concorrencial numa escala global.

O advento da biotecnologia veio trazer novas possibilidades mas também novas interrogações, uma vez que os investigadores, não se limitando a estudar algo, com frequência chegaram ao ponto de criar algo, designadamente produtos biotecnológicos inovadores e patenteáveis. Tal fenómeno já existia anteriormente, muito embora numa escala significativamente mais limitada.

O compromisso fundamental do investigador é com a descoberta da verdade. Tradicionalmente, as descobertas científicas são comunicadas ao conjunto dos interessados - a Ciência é uma actividade fundamentalmente aberta. Poderia representar, em alguma medida, um embrião da "société ouverte" de H. Bergson.

No momento em que um CMA procede ao estabelecimento de uma patente de um produto gerado no seu seio, estabelece-se um conflito de interesse entre a procura da verdade em estudos subsequentes a serem desenvolvidos pelo mesmo CMA, e o interesse comercial que aponta no sentido de tais resultados serem favoráveis ao produto em causa. O CMA corre, em consequência, o risco de se tornar "juiz em causa própria".

Também no que respeita ao ensino se estabelece uma situação semelhante. O aluno espera, legitimamente, que as matérias sejam abordadas numa perspectiva científica, e espera, em consequência, que não se façam sentir nos conhecimentos que vai formar quaisquer influências estranhas ao âmbito da verdade científica. Os alunos do CMA, enquanto entidades autónomas e enquanto futuros profissionais, são claramente parte interessada nesta problemática.

Vários estudos têm mostrado uma associação entre o patrocínio dos estudos científicos por parte da indústria e a existência de conclusões favoráveis aos patrocinadores (ou seja, à indústria). Tal fenómeno é sujeito a vários tipos de interpretações, uma das quais envolve a possível existência de "publication bias", ou seja, a tendência para serem mais facilmente publicados os resultados positivos do que os negativos. Este tipo de fenómenos levou à instituição de registos sistemáticos de ensaios clínicos no momento do seu início, de forma a não ser fácil qualquer tentativa para ocultar resultados desfavoráveis exibindo apenas os favoráveis.

Em súmula, as parcerias institucionais academia/indústria podem concorrer para o progresso da Ciência. Contudo, é fundamental que os conhecimentos gerados se aproximem tanto quanto possível da verdade, e que a confiança do público na investigação científica seja garantida através da disponibilidade para o escrutínio público da natureza de tais parcerias. Os conflitos de interesse, enquanto circunstâncias potencialmente limitadoras dos objectivos atrás expostos, carecem de uma abordagem clara, metódica e sistemática.

(5) R.A. Rettig. The industrialization of clinical research. Health Affairs, 2000, Vol. 19, pág. 129-146.

José Pedro Lopes Nunes

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